novembro 14, 2006

Convite a Zama


Lentamente, vamos deixando de dar as costas à literatura em língua hispânica da América Latina, o que significa descobrir que a ficção e a poesia têm muito mais a oferecer do que Borges, Cortázar, Gabriel García Márquez, Neruda e a meia dúzia de escritores até há pouco tempo conhecidos em língua portuguesa.

Desde 2005, por exemplo, a Editora Globo vem publicando os principais romances do argentino Antonio Di Benedetto, de quem acabo de ler Zama. Um livro perturbador, muito distante do que algumas resenhas apressadas definiram como "biografia fictícia". Numa linguagem cinzelada, superior ao derramado palavrório e à retórica nem sempre expressiva de alguns escritores latino-americanos, que são tratados como geniais no Brasil, Zama é um daqueles romances cuja segunda principal qualidade – pois a primeira é a linguagem – reside no poder de nos questionar.

Para Juan José Saer, outro genial escritor argentino, que assina o prefácio de Zama, o romance "não se rebaixa à demagogia do maravilhoso nem à ilustração de tese sociológica; não se obstina em repetir-nos as velhas crônicas familiares que murcham o romance burguês desde fins do século XIX; não divide a realidade, que é problemática, em nações; não pretende ser a summa de nenhum grupo ou lugar; não dá ao leitor o que o leitor espera de antemão, porque os preconceitos da época condicionaram seu autor induzindo-o a escrever o que seu público lhe impõe; não honra revoluções nem heróis de extração duvidosa e, no entanto, apesar de sua austeridade, de seu laconismo, por ser o romance da espera e da solidão, não faz senão representar, a seu modo, obliquamente, a profunda condição da América, que cintila, frágil, em cada um de nós".

Perdoem-me a citação extensa, mas Saer, falecido há poucos anos, é um dos raros escritores que elaboraram uma diversificada e original reflexão sobre a escrita, seus processos criativos e os usos da linguagem.

De Antonio Di Benedetto, quero transcrever aqui um trecho de sua entrevista a Günter W. Lorenz, publicada em Diálogo com a América Latina – panorama de uma literatura do futuro (Editora E.P.U.): "[...] Escrevo porque se põem diante de mim, porque se colocam na minha imaginação, personagens envolvidos em um transe ou possuídos por uma obsessão ou uma esperança, e me empenho em levá-los até o final bem, que às vezes não existe. [...] escrevo porque gosto de narrar. Escrevo por que gosto da ocupação de escrever. Escrevo porque me guia uma vontade intensa de construir, por meio da palavra. Escrevo para analisar-me. Escrevo para esclarecer o que me prejudica, o que prejudica à gente como eu. Escrevo para entender e entender-me. Escrevo para que a subjetividade explore as paisagens abertas e as cavernas sombrias das pessoas que o mundo objetivo lhe propõe. Escrevo para que minha consciência percorra mais regiões do que o mundo objetivo lhe propõe. Escrevo para confessar e não ser absolvido".

Da consciência desse homem nasceu Zama, que ele dedica "às vítimas da espera", ou seja, a alguns de nós.

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