julho 18, 2007


A busca


Dentre os sonhos recorrentes que tenho, principalmente um me coloca em estado de perplexidade logo no primeiro momento da vigília, quando retorno ao inevitável cotidiano, onde nenhuma das possibilidades do mundo onírico se realiza.

Nesse sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave dependurada no batente, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Imediatamente, sinto o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar levemente pegajoso que vem do ambiente escuro.

O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor de luz. E a seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que ainda permanece escuro.

Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca – e o encontro certo – não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a – e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão.

Sei exatamente o que venho buscar: o livro acima de todos os livros: um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, um guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas um conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana.

Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que fiz centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos a tudo e a língua ferina, quando se trata de falar dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de encontrar o que procuro, tamanha é a minha certeza.

E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de círculos pequenos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre um fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos, estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la – mas acordo.

Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Naquele primeiro momento da vigília – ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume –, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. E, quem sabe, algum dia permitir que eu leia ao menos o título, talvez a primeira linha.

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