agosto 21, 2007


A Viagem Invernal


Há livros, músicas e filmes aos quais sempre retornamos. Nós os revisitamos, de tempos em tempos, buscando algo que nos marcou, uma verdade antes apenas intuída e que, graças àquele livro ou àquela canção, tornou-se consciente e pôde ser até mesmo verbalizada. No meu caso, semanalmente volto a escutar o conjunto de canções Die Winterreise - A Viagem Invernal, composto de 24 poemas de Wilhelm Müller, musicados por Franz Schubert. A gravação que tenho, na voz do barítono Dietrich Fischer-Dieskau, um dos artistas mais completos do século XX, me coloca em estado de predisposição à vida. Ainda que os poemas estejam impregnados de melancolia, o sentimento de contínua partida, de permanente despedida, faz com que eu recupere a consciência de estar sempre a caminho, de que as certezas, se existem, são raríssimas – e de que não há outra forma de viver com lucidez.

Dentre os lieder, "Im Dorfe" é o que mais aprecio. Cães ladram enquanto todos dormem. Agitados, eles chacoalham suas correntes sob a noite fria. Mas o viajante se nega a dormir, pois recusa a falsa esperança que os sonhos muitas vezes alimentam. Ele não aceita mais quaisquer mentiras – e exatamente por esse motivo caminha em meio à escuridão. Colocou um ponto final em todos os sonhos; não quer meias verdades ou a felicidade acalentada nas horas de inconsciência. E enquanto segue seu caminho, cujo fim desconhece, grita para que os cães ladrem sempre, cada vez mais alto, pois não aceita dormir o sono que o tornará apenas mais infeliz. Com razão, ele se considera o único homem desperto, não só em meio à noite.

A seguir, uma tradução livre do poema, feita por uma grande amiga. Mas outras traduções, em diferentes línguas, podem ser encontradas no site dedicado exclusivamente a Die Winterreise.

No povoado

Cães latem, suas correntes chacoalham,
pessoas dormem em suas camas.
Elas sonham com o muito que não têm,
encontrando algum refrigério em coisas boas e más;

E amanhã de manhã tudo terá desaparecido.
Mas até lá elas terão aproveitado o que lhes toca,
e acalentado a esperança de que o que permaneceu
ainda será encontrado sobre seus travesseiros.

Acordem-me com seus latidos, cães vigilantes!
Não me deixem encontrar repouso nessas horas de torpor.
Eu dei um fim em todos os sonhos;
por que eu deveria permanecer entre pessoas que dormem?

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