agosto 31, 2007

Passagem


Encontro meu filho no colégio. Há várias filas de alunos no amplo salão, e estou sentado, junto com outros pais, num local onde ele não pode me ver. De longe, percebo o quanto cresceu – está quase um adulto. Dá evidentes sinais de desconforto, contudo, olhando para os lados, o que interpreto como um pedido de ajuda. Ao mesmo tempo, os alto-falantes liberam uma estranha música, angustiante, pois sua letra se refere a alunos que serão expulsos da escola. Alguns deles, perfilados, passam a receber uma camiseta verde. Devem vesti-la sobre o uniforme e dirigirem-se a uma parte fechada do salão. À medida que presencio tudo, uma certeza cresce em mim: meu filho será expulso da escola – e assistirei a um vergonhoso auto-de-fé, cujo objetivo é humilhar os punidos. Desesperado, sem saber a quem recorrer, levanto e sigo para as filas, enquanto os alto-falantes silenciam e os jovens debandam. Meu filho vem na minha direção, acenando com a camiseta, que é apenas parte do uniforme do time de futebol, para o qual ele foi convocado. Abraço-o, conto-lhe minha confusão e ele ri. Sinto um profundo alívio. Mas no instante seguinte, dois mulatos se aproximam, tratando-o com estranha intimidade e usando o jargão que, imagino, é comum a certas igrejas evangélicas. Pergunto seus nomes. Eles mal se apresentam, embaralham uma desculpa e, nitidamente, inventam o nome do Seminário onde afirmam estudar. Observo, nos olhos injetados, a hipocrisia e a mentira que nadam com todo o vigor. Logo depois se despedem, mas tenho certeza de que já catequizaram meu filho. Quero alertá-lo sobre o comportamento dos dois, mas não há tempo: ele troca de roupa ali mesmo, pois o jogo vai começar. Olho para o seu corpo nu e me surpreendo. Havia me esquecido de que ele crescera, e esperava encontrar um pênis infantil. Mas vejo o membro adulto e fico alegremente surpreso, pois essa visão me dá a certeza de que ele pensa por si mesmo e não será influenciado pelos falsos catequistas. Ele parte, então, feliz, unindo-se aos amigos.

agosto 25, 2007


Sibila


O número 12 da Revista Sibila já está disponível na web e pode ser lido, integralmente, em pdf. Dentre os vários assuntos, há um equilibrado dossiê sobre Cuba, no qual ganham voz poetas exilados e artistas (um poeta e um pintor) que ainda vivem na ilha. O interessantíssimo perfil de Raúl Castro, escrito por Idalia Morejón Arnaiz, e uma entrevista com o professor Demétrio Magnoli fecham o dossiê. Leiam um trecho do bate-pronto com Magnoli:

Sibila: O senhor acha que os intelectuais e artistas que saíram de
Cuba transformaram a oposição a Castro num lucrativo produto de
exportação e são também cúmplices das mazelas do país?

DM: Não. Acho muito fácil fazer essa acusação a pessoas que saíram
do país quando a alternativa era ficar sem poder falar. Quem ficou foi
para a cadeia, porque Cuba é um país que proíbe o pensamento. Cuba
proíbe máquina de fax, recolhe computadores, proíbe conexões com
a internet. É uma coisa de outro mundo, por isso acho bem razoável
que eles tenham resolvido falar e escrever fora de Cuba. Saíram para
poder continuar se expressando.

Mas sugiro que a visita a Sibila – não só à última edição – seja feita com calma, pois há uma diversidade extraordinária de temas. Ainda no nº 12, por exemplo, cinco poemas de Drummond lidos por ele mesmo.

Quem percorrer as seções de Sibila não pode deixar também de conhecer o trabalho de Régis Bonvicino (foto) e Alcir Pécora, que dividem a direção da revista com o poeta e crítico Charles Bernstein. De Alcir Pécora, recomendo o ensaio deliciosamente irônico "Momento crítico: meu meio século", uma lúcida visão sobre a crítica e a literatura brasileiras contemporâneas. De Bonvicino, o vasto material em seu site chega a desorientar, positivamente, o leitor. Mas apreciei ler, entre os textos voltados à crítica, "A função da poesia" e "Borges: o poético e a poesia".

Para fechar este post e o sábado, um belo poema de Régis Bonvicino:

SÉTIMO POEMA

Silêncio é forma
contar é ato
livre, imprevisto
traço de luz

ele se aquieta
contraste & vulto
que rompe súbito
em outra véspera

voz das camândulas
no livre curso
lis de petúnias,
fisionomia,

muda, da sombra,
& os avelórios
cortando os dedos,
a cada conta

para Claude

agosto 24, 2007

Quando não há retorno


Um homem caminha perdido entre as ruelas de uma cidade do Bahrein. Foi o ponto máximo ao qual ele conseguiu chegar em termos de estranheza. Ele veste uma longa túnica branca e caminha impassível entre a multidão que vocifera. Mais alto que a maioria das pessoas, ele vê as cabecinhas agitando-se por milhares de coisas banais. Não está somente acima delas, mas além: os passos lentos, o olhar que cruza o oceano de inútil azáfama, os braços e seus movimentos quase imperceptíveis. Então se lembra de Kit, a heroína de O céu que nos protege, que há muitos anos ensinou-lhe a terrível lição: "De um certo ponto em diante não há retorno; este é o ponto a ser alcançado". Em sua irremediável solidão, sabe que lhe restaram os livros e sua consciência, sua lucidez, e recorda-se do dedo de seu pai, o indicador, com o qual ele batia contra a própria testa, repetindo: – O que você tem aqui dentro, ninguém pode arrancar. E essa imagem o faz lembrar da citação tantas vezes relida, que resume a verdade capaz de lhe conceder equilíbrio: "Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre". O homem segue seu caminho. Não está mais no Bahrein. Pode estar em qualquer ponto da Terra. Está vivo – ainda caminha acima e além da maioria. E sabe que precisa escrever.

agosto 21, 2007


A Viagem Invernal


Há livros, músicas e filmes aos quais sempre retornamos. Nós os revisitamos, de tempos em tempos, buscando algo que nos marcou, uma verdade antes apenas intuída e que, graças àquele livro ou àquela canção, tornou-se consciente e pôde ser até mesmo verbalizada. No meu caso, semanalmente volto a escutar o conjunto de canções Die Winterreise - A Viagem Invernal, composto de 24 poemas de Wilhelm Müller, musicados por Franz Schubert. A gravação que tenho, na voz do barítono Dietrich Fischer-Dieskau, um dos artistas mais completos do século XX, me coloca em estado de predisposição à vida. Ainda que os poemas estejam impregnados de melancolia, o sentimento de contínua partida, de permanente despedida, faz com que eu recupere a consciência de estar sempre a caminho, de que as certezas, se existem, são raríssimas – e de que não há outra forma de viver com lucidez.

Dentre os lieder, "Im Dorfe" é o que mais aprecio. Cães ladram enquanto todos dormem. Agitados, eles chacoalham suas correntes sob a noite fria. Mas o viajante se nega a dormir, pois recusa a falsa esperança que os sonhos muitas vezes alimentam. Ele não aceita mais quaisquer mentiras – e exatamente por esse motivo caminha em meio à escuridão. Colocou um ponto final em todos os sonhos; não quer meias verdades ou a felicidade acalentada nas horas de inconsciência. E enquanto segue seu caminho, cujo fim desconhece, grita para que os cães ladrem sempre, cada vez mais alto, pois não aceita dormir o sono que o tornará apenas mais infeliz. Com razão, ele se considera o único homem desperto, não só em meio à noite.

A seguir, uma tradução livre do poema, feita por uma grande amiga. Mas outras traduções, em diferentes línguas, podem ser encontradas no site dedicado exclusivamente a Die Winterreise.

No povoado

Cães latem, suas correntes chacoalham,
pessoas dormem em suas camas.
Elas sonham com o muito que não têm,
encontrando algum refrigério em coisas boas e más;

E amanhã de manhã tudo terá desaparecido.
Mas até lá elas terão aproveitado o que lhes toca,
e acalentado a esperança de que o que permaneceu
ainda será encontrado sobre seus travesseiros.

Acordem-me com seus latidos, cães vigilantes!
Não me deixem encontrar repouso nessas horas de torpor.
Eu dei um fim em todos os sonhos;
por que eu deveria permanecer entre pessoas que dormem?

agosto 20, 2007

Corporações de ofício


A praia, na forma de uma enseada, cheia de pessoas. Elas parecem caminhar a esmo, cabisbaixas. Parecem estar perdidas. Não se interessam pelo mar, sequer experimentam a temperatura da água. As ondas seguem seu ritmo e as pessoas vão e voltam, desorientadas. É o fim da tarde, prestes a anoitecer. Algo me diz que há um movimento grevista sendo preparado. Logo a seguir, em outro ambiente, talvez minha casa, talvez não, um homem – e sua indefectível mecha grisalha no cabelo – anuncia na tevê que "o governo decidiu extinguir as corporações de ofício". O programa jornalístico prossegue e agora tenho certeza: estou na sala do sobrado em que passei a infância, com os mesmos móveis, a mesma televisão, a cortina atrás da qual nos escondíamos. Mas experimento uma funda estranheza, pois a expressão "corporações de ofício" parece-me completamente fora de lugar. Surge diante de mim a imagem impossível de um Marco Polo grevista, de um Lorenzo de Médici presidente da Fiesp e os pensamentos se embaralham. Súbito, percebo que tudo está errado – a praia, a notícia e o fato de eu estar ali –, tudo está fora de lugar. O estranhamento se torna pungente – e acordo.

agosto 17, 2007

A decadência da escola


Sempre me surpreendo com o fato de que a escola brasileira – não só a pública – ensine cada vez menos. Quando meus pais estavam em idade escolar, na década de 1940, nenhuma criança terminava o antigo Ginásio sem ter estudado, durante quatro anos, latim, francês e inglês, além das matérias que até hoje são aprendidas. Depois, no que se chamava Colegial, aqueles que escolhiam a área de humanas, o antigo Clássico, acrescentariam o grego às línguas – e, em alguns estabelecimentos de ensino, também o espanhol. E ninguém seguiria para a universidade sem dominar os fundamentos da filosofia (método lógico de raciocínio, visão abrangente das escolas filosóficas, estudo dos textos básicos dos grandes mestres) e sem conhecer literatura clássica (os latinos eram lidos no original). Os livros didáticos daquela época ainda podem ser encontrados nos sebos e comprovam o que afirmo.

Esse período de ouro é passado, infelizmente – um passado, aliás, que já ouvi muitos pretensos educadores tratarem com desprezo. Mas aquela escola preparou uma geração cujos frutos ainda repercutem, apesar de cada vez mais diluídos.

Em minha casa, por exemplo, além da biblioteca paterna, pela qual tínhamos profundo respeito, recebíamos aulas informais de argumentação oral. Aos domingos, meu pai me incentivava a ler os artigos de fundo e os editoriais de O Estado de S. Paulo. Em seguida, escolhendo os pontos mais polêmicos, provocava o debate, muitas vezes radicalizando de maneira proposital o seu raciocínio, com o objetivo de forçar minha refutação. Quantas vezes fiquei encurralado, sem respostas. E em raras ocasiões, ao pressentir sua derrota, ele começava a rir, pois eu conseguira fisgá-lo. Lembro-me de, ao final daquelas tardes, imaginar-me entre os peripatéticos. Quando nossas discussões terminavam, um sentimento de orgulho me reconfortava, pois sabia que algo novo e melhor fora acrescentado à minha inteligência.

Se aquelas tardes foram possíveis, se meu pai conseguiu abrir minha consciência e meu discernimento daquela forma, foi porque recebeu uma formação escolar sólida, na qual os alunos jamais eram nivelados por baixo.

Revendo meus anos escolares, percebo que a decadência do ensino estava em marcha. Dentre as línguas, estudávamos apenas inglês, e não me recordo de, na aula semanal de filosofia, ter avançado além de uma rápida história das escolas filosóficas. A própria formação dos professores era desigual. Quando o Estado encerrou, de maneira arbitrária, o 2º Grau no Colégio Romeiro Pereira – em minha cidade natal, Jundiaí-SP – e fomos forçados a migrar para outras escolas, me surpreendi com a mediocridade de alguns dos professores que encontrei no Ana Pinto Duarte Paes. Um professor de história, por exemplo, nos obrigava a decorar as apostilinhas superficiais que ele elaborava e depois distribuía em classe, tremendo e espargindo perdigotos, profundamente emocionado ao nos ensinar que os gregos inventaram o bambolê. E havia também uma professora de inglês que passava as aulas folheando o Diário Oficial e fazendo comentários sarcásticos sobre os nomes estrambóticos que encontrava, esquecendo-se de que ela mesma atendia pelo nome de Dausinéia. Suportei apenas um ano aquela palhaçada. Transferido para o Instituto Experimental de Educação, reencontrei o prazer de estudar ao conhecer pelo menos três grandes mestres: Cecy Martinho (história), Paulo Bevilácqua e Paulo Vieira (ambos de língua portuguesa).

A derrocada da escola alcançaria seu ápice, no entanto, com a "progressão continuada". Por meio dela, com a desculpa de se promover oportunidades iguais em uma sociedade injusta, premia-se a negligência e a inércia. Milhares de alunos chegam à universidade sem estarem alfabetizados, impedidos de exercer qualquer juízo crítico que vá além de decidir entre as marcas de papel higiênico num supermercado. E sem conhecer nem mesmo a borda do que a humanidade acumulou em sua história.

Ao passar a falsa idéia de que somos todos iguais, a escola equipara o aluno dedicado, e que deseja se superar, àquele que sempre será, no máximo, mediano. Infelizmente, esqueceu-se, neste país, uma verdade simples: não se adquire conhecimento sem esforço, sem auto-superação. Assim, ensina-se menos e exige-se menos – e ao final, conseguimos uma horda de analfabetos. Um recurso perfeito para melhorar as estatísticas apresentadas à ONU e ao Banco Mundial, mas que substitui a meritocracia pelo deserto da ignorância.

agosto 15, 2007

Esquecimento


Não recordar-se dos próprios sonhos é errar o caminho que nos traz do mundo onírico à vigília. Ao caminhante noturno foi recomendado que não parasse em lugar algum, não obedecesse a qualquer dos seus sentidos, muito menos a sua curiosidade, mas ele falhou, certamente. Não se trata apenas de ter perdido a informação que, refazendo-se o percurso, poderá ser reencontrada, mas de experimentar a perda sem solução, pois nenhum guia noturno o levará a repisar suas próprias pegadas, de maneira a experimentar novamente o que viveu e sentiu ao passar por aquele trecho. Não lembrar de seus sonhos – tendo certeza que sonhou – talvez seja uma espécie de autocensura, talvez uma recriminação inconsciente, e por isso mesmo inaceitável. O coma, ou melhor, o tempo vivido em uma UTI, durante o qual vagamos entre o longínquo barulho dos aparelhos e a visão entrecortada daquele mundo sem dias ou noites, assemelha-se ao esquecimento do sonhado. Ainda levará uma hora para amanhecer. Como o herói que detém apenas um quarto do mapa do tesouro, que ele estuda repetidas vezes, sem conseguir identificar o Norte ou o Leste, assim inicio o dia, certo de ter perdido o essencial, esvaziado do patrimônio que jamais recuperarei.

agosto 09, 2007


A questão do romance policial


Há um interessante diálogo correndo pela web, dedicado ao romance policial. Começou com o Leandro Oliveira apontando os aspectos que ele considera "fracos no gênero". Depois, Marco Polli, sem refutar os argumentos do Leandro, descreveu quatro pontos que, segundo ele, são características fortes desse tipo de narrativa. A seguir, Olívia Maia lembrou Todorov e Alexandre Soares Silva ofereceu uma ótima citação de G. K. Chesterton.

Decidi entrar na conversa por um simples motivo: o romance policial já me concedeu horas gratificantes de leitura. Raymond Chandler, Dashiell Hammett, P. D. James e, principalmente, George Simenon tornaram meus dias mais suportáveis, fizeram-me ver facetas inesperadas do real e do ser humano, e me ofereceram a oportunidade de estudar como um autor pode resolver os problemas que coloca para si mesmo – ao optar por determinado enredo, ao constituir uma personagem com estas ou aquelas características, etc. –, sem abdicar da preocupação de tecer sua própria voz, seu estilo, cuidando da linguagem e da trama, enfim, erguendo um pequeno universo que se sustenta por si mesmo.

No texto que dá início ao bate-papo, o Leandro aponta três problemas: 1. "São constituídos a partir de um único pilar"; 2. "a tendência de um mesmo personagem aparecer numa série de livros"; e 3. "a grande maioria dos livros policiais possuem um único foco".

Em minha opinião, inicialmente, fazem-se necessárias duas ponderações. Primeiro, acredito que os três problemas nem sempre são problemas. O fato de adquirirem a forma de um tropeço ou de uma qualidade depende do autor e das escolhas que ele faz. E, segundo, podem ser encontrados em qualquer tipo de romance. Ou seja, nenhum dos três pontos está necessariamente circunscrito ao romance policial.

Vejamos o primeiro. Há dezenas de autores que produzem suas histórias partindo de um único centro. E nem sempre falham. Aliás, inúmeros romances restringem sua trama a um único motivo condutor, e nem por isso são menores ou de má qualidade. Não oferecer subtramas nem sempre é um sinal de fraqueza. Muitos dos romances atuais, escritos em primeira pessoa, abarcam um universo restrito, e o drama se desenrola, algumas vezes, na consciência do narrador, em suas lembranças ou no que ele imagina, envolvendo um número pequeno de personagens e obrigando-os a se relacionarem principal ou exclusivamente com o narrador.

Quanto ao segundo ponto, há autores que nunca escreveram uma só linha do gênero policial, mas, ainda que não repitam os personagens, repetem os mesmíssimos narradores. Você salta de um livro a outro e o narrador está lá, com outro nome, com problemas diferentes, mas falando do mesmo jeito, utilizando as mesmas pausas, preferindo os mesmos verbos e enfocando os dramas com a mesma psicologia. Nesse caso, realmente é um defeito. Mas no que se refere aos romances policiais, a honestidade do autor em relação a seus leitores é exemplar. Quando você pega nas mãos um Simenon, sabe que as chances de se deparar com o comissário Maigret são imensas. E o autor não tenta esconder isso de você. Ao contrário, a cada livro nos mostra como Maigret é um homem de personalidade complexa, múltipla, que se repete em determinados aspectos – aliás, como todo ser humano se repete –, mas sem escamotear suas dúvidas e angústias.

Finalmente, no que se refere ao fato de os romances policiais se fixarem "em um único foco", ou seja, segundo o Leandro, se concentrarem ou no criminoso ou no detetive, essa observação também é relativa. Bons escritores podem optar por esse "único foco" e nos oferecer o mundo. E outros, alguns até mesmo geniais, não nos oferecem um foco específico, mas realizam o extremo oposto: uma narrativa que se espalha nas mais surpreendentes direções, algumas vezes sem nada concluir – uma opção que, em mãos inábeis, pode gerar um fracasso colossal.

Enfim, creio que os supostos defeitos listados pelo Leandro tornam-se qualidades nas mãos de um bom escritor, produza ele romance policial ou não. Ou podem ser defeitos, sim, mas isso independe do gênero. Talvez, se o Leandro optasse por nos mostrar exemplos, certamente concluiria que onde um autor errou, outro, ao optar pela mesma técnica narrativa, acertou em cheio.

NOTA (às 22h50 de sexta-feira, 10 de agosto) - O Babelia desta semana trata do romance policial: La novela policiaca vive un auge indiscutible. Prueba de ello son los aires de renovación que se perciben en España, el esplendor de la nueva narrativa negra francesa o la aparición de nuevos autores suecos, en la línea marcada por Maj Söjwal y Per Wahlöö o Henning Mankell. Lo negro experimenta, además, una afortunada contaminación de otros géneros con resultados muy potentes.

agosto 08, 2007


O revolucionário


Preparando-se para sair, ele reclamou do frio, enquanto vestia o casaco disforme, lembrança de sua estada na Rússia, quando o partido o obrigara a permanecer vários meses em uma cidadezinha do interior, até que o impacto do golpe militar fosse devidamente analisado e "as coisas ficassem mais claras no Brasil".

Só a tela da tevê iluminava a sala. Ele soltou um grunhido de despedida à mulher, concentrada em acompanhar o capítulo da novela, e, ainda palitando os dentes, saiu para a rua.

O encontro daquela noite não seria no partido, mas em um prédio sórdido, ao lado da rodoviária, onde o aguardavam cinco companheiros. A pauta, fácil de ser resolvida: decidiriam uma maneira eficaz de compor duas ou três alianças no diretório, de forma a desmantelar o grupo independente.

A perna esquerda doía, mas ele tinha o hábito de fazer seu esqueleto obedecê-lo – afinal, tudo era uma questão de disciplina. Com o palito, retirava os restos de comida que ficaram entre os dentes, engolindo-os depois de mastigar um pouquinho.

A reunião não o preocupava. As táticas para conter os insatisfeitos, silenciar os mais audaciosos e seduzir os que sempre estão prontos a passar para o lado mais forte compunham os melhores capítulos do manual que ele e toda a velha guarda decoraram.

Escarafunchar os dentes do fundo obrigava-o a abrir a boca de maneira estranha. Mas quando largava o palito entre os lábios, tornava-se impossível saber se ele ria com malícia ou se aquelas expressões eram somente reflexos dos movimentos de sua língua, tentando alcançar um teimoso fiapo de carne que se agarrava à obturação.

Depois de alguns quarteirões, as dores alcançaram os quadris, mas acima das agulhadas repousava, sereno, o treinamento de jamais faltar ao dever. Não falharia. Não agora, depois de viver décadas pulando de fábrica a fábrica, aliciando simpatizantes para a causa e promovendo distúrbios ou greves. Como em tantas outras vezes, assim que acendesse o pavio, sairia de cena, pronto para ser usado em uma nova missão.

É certo que, no passado, as glórias pelos distúrbios bem-sucedidos ficaram no altar dos dirigentes. Mas quando pôde, não desperdiçou a chance de derrotar aquelas lideranças, incluindo seu melhor amigo, pois "os fins justificam os meios", e traí-lo representava um mal insignificante, se comparado ao mundo que ele tinha certeza de estar construindo, onde os povos viveriam unidos sob a bandeira da igualdade, "comandados pela única classe capaz de promover a revolução", assim ditava o manual.

O muro do quartel acompanhava seus passos naquele trecho. De volta da Rússia, ficara preso ali cerca de quinze dias, o que consolidou sua fama. Mas ninguém saberá o quanto ele próprio contribuiu para que se espalhasse a notícia das torturas e das humilhações, pois, na verdade, jamais encostaram sequer um dedo em sua pele branca e flácida. Nem mesmo o interrogaram, tamanha a sua insignificância.

E ao ser libertado, encontrou a chance de substituir os que estavam presos ou mortos. Gradativamente, ascendeu na organização clandestina, protegido por um emprego medíocre no comércio, pelo ar falsamente circunspecto e pelo silêncio ardiloso que os tolos acreditavam ser um sinal de sabedoria.

Na década de 1980, quando o novo partido surgiu, a antiga escola foi relegada a segundo plano, e ele teve de galgar os mesmos degraus do passado, agora obedecendo à cartilha na qual algumas das melhores palavras de ordem foram substituídas por uma só, tristemente repetida: "democracia".

O pedacinho de carne enfim se soltou. Espremendo os olhos como um animal que acaba de sair da toca e ainda não se acostumou à luz, ele observa, parado sob o semáforo, as janelas do prédio encardido. O vermelho e o verde se alternam na calva repleta de manchas. O venerável estrategista sorri, joga fora o palito mastigado e atravessa a rua, a caminho de uma nova traição.

agosto 06, 2007


O irremediável


A criança azul está diante de mim, vestida como todos os bebês que estão prontos a deixar a maternidade. Seu rosto azul se contorce, ela resmunga, agitando o corpinho em movimentos desconexos. Olho-a demoradamente, estendida sobre um balcão de metal. Analiso o porquê do azul, se a criança respira e apresenta todos os reflexos. Ao mesmo tempo, por trás desses raciocínios técnicos, um pensamento me incomoda: a persistente comparação que faço, lembrando-me do Menino com cachimbo, de Picasso. Serei um médico? Algum tipo de enfermeiro? Ou mero curioso? Talvez, um intrometido. Os pais, de pé, aguardam do outro lado do balcão. Mas não esperam que eu libere a criança. Querem, antes, um diagnóstico. Argumento com eles, tento explicar as possíveis causas – das quais não me recordo agora –, e a cada justificativa, como se fossem médicos, eles rebatem minhas alegações. O que seria, aparentemente, uma consulta final, rotineira, torna-se uma discussão. O bebê chora, esperneia. No rosto azul, irrompe a boca aberta, vermelha, a lingüinha brilhante agitando-se como um peixe que acaba de saltar para fora do aquário. Não escuto os pais. Olho a criança e me preenche o sentimento do irremediável: terá de ser azul por toda a vida. Não há o que fazer. Sofro pelo bebê. E sinto-me derrotado. Então, acordo.

agosto 02, 2007


Diálogo com Rilke



Ao levantar os olhos do livro, das linhas próximas, e
ao deixar de vê-las
para contemplar a noite perfeita:
Oh! Os sentimentos pressionados se dispersam quais
estrelas,
como a fita de um maço
de flores desfeita.

Juventude suave, e severa, árdua indecisão,
ardores e arqueamentos delicados –
Por toda a parte o desejo de corresponder e em parte
alguma a ambição;
Terra suficiente, mundo demasiado.


[Tradução de
Marco Lucchesi, em Poemas à noite, Editora Topbooks.]


Há uma falsa idéia nesse poema de Rilke: a de que ele fala dos sentimentos e das sensações próprios da juventude. Talvez ele se refira apenas à juventude, mas prefiro pensar diferente. Primeiro, porque o "desejo de corresponder" e a "ambição" não me parecem antagônicos. E também por não acreditar que, quando somos jovens, a ambição inexiste. No entanto, é claro que o poeta trata de um outro tempo, e de uma cultura distante da nossa.

De qualquer maneira, o poema me agrada, pois, se ele expressa verdades típicas da juventude, então todos nós, leitores, permanecemos jovens. Não há leitor que, ao erguer os olhos do livro e contemplar a natureza, a vida ao seu redor, não sinta a tensão se diluir, seja porque descobriu dentro de si aquela certeza que reafirma o conteúdo da leitura, seja porque, desviando-se das idéias que o absorvem, ele acorda para o fato de que o pulsar da existência ultrapassa a sua angústia, subverte suas preocupações, tornando as dúvidas pequenas, quase sem importância.

Na verdade, o poema descreve essa atividade de contração e relaxamento que o ato de ler proporciona – toda ciência nasce de uma busca empreendida na intimidade, no silêncio, sendo, logo a seguir, referendada, negada ou redimensionada pelo real. Às vezes, ocorre o inverso. Mas sem o livro – seja ele o objeto onde espelhamos nossa experiência, seja ele o ponto a partir do qual repensamos o viver –, sem o livro, sem a possibilidade da comparação, da analogia, seríamos menores.

No que se refere estritamente à ficção, quantas gerações levaríamos para conhecer os vícios que Balzac nos mostra em um único romance? E quantas vezes, ao sermos apresentados a alguém, não ganha vida diante de nós um José Dias e seus superlativos? Ou até mesmo Conceição, ainda que sem as "chinelinhas da alcova"? E, pelo fato de conhecê-la, não se concretiza então a possibilidade de rompermos a lógica do conto e, astuciosamente, agirmos de maneira contrária à do imaturo Nogueira?

Poder compulsar a experiência humana, identificando-nos ou não com os personagens, as cenas e as idéias que os livros nos oferecem, permite que a vida continue sendo suficiente – e o mundo não nos esmague com seu excesso.