abril 28, 2009

Cartas e civilização

O artigo de João Pereira Coutinho, na Folha de hoje, me levou a revisitar um dos gêneros que mais aprecio: a epístola. Cartas são diálogos, francos ou não, em que revelamos facetas da personalidade – boas e más. Um epistolário, portanto, pode chegar a ser “uma autobiografia não premeditada, transmitida por mil casualidades, sobrevivente por puro milagre”, como bem definiu Hermann Kesten, ao falar sobre as cartas de Joseph Roth.

No Brasil, as missivas de Mário de Andrade e Monteiro Lobato apresentam não apenas o ser humano, muitas vezes num despojamento comprometedor, mas também a lenta e permanente elaboração de uma cultura tão extravagante quanto imatura, frágil. Elas formam a radiografia do país que ainda não encontrou seu centro, com suas qualidades e mazelas, ainda que os brasileiros se acreditem exemplos de cordialidade e civilização, vaidosos como índios se admirando a primeira vez num espelho.

Bem sei que talvez não tenhamos leitores para as dez mil cartas de Voltaire e outros tantos volumes de Madame de Sévigné, mas por que só publicamos, de Flaubert, uma pequena coletânea? É verdade que Marco Lucchesi nos presenteou com a correspondência de Giacomo Leopardi, traduzida por Maurício Dias, mas quando poderemos ler, em português, as cartas de John Keats, com a admirável introdução de Lionel Trilling? E as missivas de Diderot a Sophie Volland? Sim, temos as Cartas do cárcere, de Gramsci, plenas de amor paterno, documentos que, descontando-se o esquerdismo do militante, retratam a angústia da luta contra a própria decadência física. Mas, e as cartas de Cícero, de Petrarca? Ou, para ficar entre brasileiros, quando teremos as missivas, por exemplo, de Ribeiro Couto?

A Academia Brasileira de Letras tem procurado superar o atraso, e já publicou as cartas de Alphonsus de Guimaraens, José Honório Rodrigues e Casimiro de Abreu. Mas ainda há muito Brasil para ser revelado. Não o Brasil que sabe apenas olhar-se no espelho, mas aquele que, observando os outros, vê a grande distância que ainda deve percorrer para dar a si mesmo o nome de civilização.

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