março 02, 2013

“Um mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”

Hoje, depois de minha palestra no Círculo de Estudos Políticos – onde falei sobre a liberdade de expressão na Rússia pós-Revolução de 1917 –, conversando com alguns dos participantes, lembrei-me de Isaiah Berlin e de seus ensaios, que foram fundamentais para mim, principalmente durante o período em que, passo a passo, percebi os erros, as falhas do pensamento esquerdista. Repito aqui, para os jovens que me ouviram, o que escrevi num post de 2009, neste blog:

Sempre que releio “A busca do ideal” (in Estudos sobre a humanidade), deixo, prazerosamente, que Berlin me conduza de uma primeira visão geral sobre a história humana no século XX para o seu próprio percurso intelectual, convencido, como ele, de que esse é um processo de constante negação da barbárie, pois “somente os bárbaros não são curiosos sobre o lugar de onde vêm, como chegaram aonde estão, para onde parecem estar indo, se desejam ir para esse lugar, em caso positivo, por quê, em caso negativo, por que não”.

Passo a passo ele revisita todas as ilusões do pensamento, do ideal platônico ao marxismo, todos esses castelos construídos no ar, que insistem em nos dizer que um dia a razão triunfará definitivamente, dando início a uma era de cooperação e harmonia universal, a “história verdadeira”.

Depois, ele nos mostra como acordou – o lento despertar rumo ao “senso de realidade”: Maquiavel, Vico, Herder –, até atingir sua visão pluralista (e jamais relativista; como, aliás, ele insiste em sublinhar). Um pluralismo despojado de qualquer utopia, firmado na realidade, segundo o qual “um mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”.

Trata-se de uma visão dura, sem dúvida. Mas absolutamente lúcida. Berlin não se permite “descansar na cama confortável dos dogmas” ou ser “vítima de uma miopia auto-induzida”. Não. Jamais haverá uma solução final para o homem, pois uma sociedade sem problemas – ou um planeta sem problemas, sem divisões – é uma sociedade “em que a vida interior do homem, a imaginação moral, espiritual e estética, já não diz nada”.

E antes que nos perguntemos o que o homem pode fazer, então, diante da realidade injusta, insatisfatória, constantemente fendida, ele nos responde: “O melhor que podemos fazer é manter um equilíbrio precário que impeça a ocorrência de situações desesperadas, de escolhas intoleráveis”.

Esse é Berlin: o olhar aberto ao real, sem jamais aceitar qualquer véu que edulcore a nossa fragilidade. Nosso “equilíbrio inquieto” está “sob constante ameaça e em constante necessidade de reparo”, ele afirma. E não há como escapar: “A situação concreta é quase tudo” e “o risco moral às vezes não pode ser evitado”. Só essa verdade nos livra da embriaguez ideológica. E só ela nos move à negociação perene com os outros homens, à urgência de estarmos continuamente reinventando o diálogo, a “intercomunicação entre as culturas”.

Isso não quer dizer, no entanto, que devemos abdicar de certos bens incontestáveis, como a liberdade, a justiça, a procura de felicidade, a probidade, o amor. Berlin é claro: “Devemos buscar esses direitos e proteger as pessoas contra aqueles que os ignoram ou recusam em admiti-los; e quando o diálogo se torna impossível, podemos, então, nos sentir impelidos a guerrear com eles. Mas é necessário sempre tentar convencê-los”.

Àqueles que estão em busca de absolutos, o pensamento de Berlin parecerá decepcionante. Mas aqueles abertos à construção do “equilíbrio difícil”, esses sabem que viver significa nem sempre conseguir evitar escolhas penosas e soluções imperfeitas; que a razão não é um instrumento plenamente eficaz; e que nossas escolhas não são imbatíveis ou incontestáveis. Na verdade, a história já demonstrou que “a busca da perfeição é a receita para o derramamento de sangue”.
 
O pensamento de Berlin, portanto, não propõe uma receita infalível para se chegar à verdade. Ao contrário, é um incansável convite ao inseguro exercício da liberdade.

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