maio 31, 2013

Antonio Di Benedetto e o silêncio impossível

O processo impregnado de complexidade, ao qual se sobrepõem idéias de avanço ou expansão intensamente ideologizadas, e que convencionamos chamar pelo nome de progresso, tem, dentre outros, um atributo característico: tornar a organização da vida cada vez mais tortuosa, ao invés de simplificá-la. Progredir é, em certos casos, um sinônimo adequado de complicar. Os aparelhos, os sinais, as linguagens e os sons gradativamente incorporados à vida consomem nossa atenção, nossos gestos, nossa capacidade de entender. Além disso, do manual de instruções de um aparelho eletrônico à numeração das linhas de ônibus, passando pelo desenho das vias urbanas, pelos impostos que escorcham e pelas regras que somos obrigados a obedecer – inclusive nos atos mais simples, como o de andarmos, a pé ou de carro –, há uma evidente arbitrariedade que se insinua no cotidiano, às vezes melíflua, às vezes violenta.

Não há espaço melhor para averiguarmos as afirmações acima do que os principais centros urbanos. Na opinião do falecido Milton Santos, um marxista romântico,

a cidade é o lugar em que o Mundo se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos homens a diferença. Por isso, a cidade é o lugar da educação e da reeducação. Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado. (1) 

Essa linha de pensamento, contudo, não é seguida por nós, os realistas, entre os quais se inclui o narrador de O silencieiro, (2) escrito pelo argentino Antonio Di Benedetto. Para nós, o progresso transformou as cidades em confusas aglomerações, nas quais a opressão e o abuso vicejam.  

Revolta e impotência

Mais do que os comportamentos expressos pelo sufixo eiro, o narrador-personagem do romance de Di Benedetto anseia desesperadamente pelo silêncio. E não se trata de uma aspiração, mas, sim, de uma febre cuja intensidade aumenta na exata medida em que o nível dos ruídos cresce.

Os barulhos, elementos inextricáveis da cidade, intrometem-se no cotidiano desse homem, ganhando, pouco a pouco, existência própria. Deixam de ser meras conseqüências do aprimoramento tecnológico e se transformam em entidades possuidoras de uma teimosia que não só perturba a vida, mas a altera profundamente. Recolhido ao quarto, o narrador ouve, por exemplo, os sons aflitivos da oficina mecânica instalada no imóvel vizinho. Eles invadem o aposento; e a percepção do ruído é tão intensa, que não se trata de apenas ouvi-lo, mas de vivenciá-lo tal qual uma pena, um sofrimento: “Não o vejo, simplesmente o padeço”. Em outro trecho, ele dirá que o ruído chega ao “dorso” do dormitório, criando uma metáfora – repetida no transcorrer da obra – que não deixa dúvidas sobre a força do barulho, capaz de atingir o quarto como se este fosse parte do corpo do protagonista.  

Os ruídos indesejados arrombam a privacidade, obrigando os personagens a participarem do que não lhes interessa: um churrasco para comemorar a inauguração da oficina; os bailes no salão aberto do outro lado da rua; o programa de rádio que o proprietário da venda próxima escuta no último volume.

Página a página, os rumores circundam e acossam o narrador, obrigando-o a ser o que não deseja, a agir em desacordo com sua índole. Violentado, ele busca refúgio na lei, mas o estudo do Código Civil mostra-lhe as dubiedades do texto: uma defesa do cidadão, mas também uma perigosa teia, na qual o reclamante pode se tornar réu.   

Não há segurança, portanto. E a própria espera do barulho, sua antevisão, a certeza de que ele se repetirá, despedaça o narrador. O barulho, então, migra da oficina para o âmago do personagem, transformando-o num hospedeiro revoltado, mas impotente:

Volto ao lar. No caminho, a cidade que desce pela minha rua apaga suas vitrines, baixa persianas: desmantela seus andaimes de trabalho. Até amanhã.

Mas resta um lugar onde a atividade prossegue: no dorso da minha casa.

A luz cinge-se ao canto onde está o torno, esse torno que pulsa conseqüente, como descubro que começa a pulsar, na minha cabeça, uma veia que bombeia algo mais sacrificada que as outras, e dói um pouco.

Lentamente, os ruídos – cuja “sina é avançar” – o levam a pequenas distrações, pequenos erros, falhas sem importância. E à medida que o barulho deixa de ser exceção para se tornar a norma irrevogável, todas as soluções possíveis fracassam e as polaridades do real se alternam. A partir desse ponto, o drama envereda rumo à loucura, cumprindo as etapas do estresse, da doença e, finalmente, do delírio. Mas seria ingênuo tratar esse narrador-personagem sem nome como um caso patológico. Na verdade, são os ruídos que lhe subtraem essência e existência, até levá-lo à despersonalização extrema, ao desejo da morte como promessa de um silêncio absoluto: “Penso no Além e imagino um silêncio incorruptível”.

Gênese e estilo

Enquanto o personagem esquadrinha a cidade em sua busca por silêncio, também sonha escrever um livro, cujo tema central seria o desamparo. Mas é exatamente essa a obra que se faz enquanto ele investiga a origem dos barulhos, livro no qual ele se encontra, cada vez mais privado do que lhe é indispensável, escrito, contudo, por outra pessoa, alguém chamado Antonio Di Benedetto. O autor, inclusive, revela – em entrevista concedida a Günter W. Lorenz (3) – a gênese do romance, num relato que, guardadas as devidas proporções, assemelha-se à trajetória de seu personagem:

[...] Digo que em El silenciero discuto o ruído físico e metafísico. Os dois me perturbam, como pessoa comum e como romancista, desde certa época penosa de minha vida. Tinha o tema, mas não conseguia nem tramar a narração nem ver e definir os personagens. Ainda que o protagonista fosse eu mesmo! Quando tive acesso à Europa, convenci-me de que em Paris – cidade que supunha mais ruidosa e atormentadora –, com mais seres atormentados pelas duas classes de ruídos, me envolveriam os elementos necessários para os argumentos. Puro engano. Não vi nem soube observar, ou melhor, não ouvi nem soube escutar, nem em Paris, nem em Bordéus, nem em Amsterdã, nem em Londres. Regressei à Argentina. Fiz-me todo ouvidos. Bem, é um exagero, pois na verdade não precisava me empenhar, os ruídos bloqueavam-me novamente, mortificantes e destruidores. Observei, estudei, o problema se encarnou em personagens que começaram a dar forma ao romance. Nasceu El silenciero: psicologias, comportamentos, neuroses, metafísica de homens de cidade, talvez de qualquer cidade moderna, industrial ou pré-industrial; todavia, captadas, aprendidas, aprofundadas em meu milieu.

Di Benedetto constrói sua história por meio de um estilo tenso, de frases enxutas, objetivas: uma prosa antibarroca, que dá vida à voz cortante do narrador desconfiado, prestes a explodir, andando pelas ruas como se os barulhos o tocaiassem a cada esquina. Narrada em primeira pessoa, a saga desesperante apresenta um homem indefeso, ciente de seus direitos, mas constatando a cada passo que o Estado, as pessoas e a tecnologia trabalham contra ele. Os verbos ressaltam dos períodos, formando um cortejo de sons ruidosos – bater, pregar, rebitar, fender, limar, acelerar, acionar, acometer, esfregar, morder, triturar – que acabam por engolfar o leitor.

De fato, a precisão das palavras torna flagrante a materialidade dos ruídos e os diferentes estados de ânimo que o narrador observa ou experimenta. Por exemplo, ao se referir à mãe, com quem vive, ele afirma: “Andava crivada a buzinaços”. E quando o delírio sobrevém, a confusão mental é evidente: “Na esquina bebe – ou esteve bebendo – uma grossa serpente que se arrasta pela rua. O bombeiro que cuida dela nesta ponta me tira a apreensão: não se trata do meu lar”.

A vida imposta

No período de tempo em que finalizo esta análise, o fragor das ruas invade mais uma vez o apartamento. Uma serra circular guincha com estridência em algum ponto; da quadra da escola, situada no quarteirão em frente, sobe insistente microfonia e a voz melancólica do funcionário que testa o amplificador dezenas de vezes; ônibus e carros aceleram, freiam, buzinam; um operário arranca a marteladas a estrutura de ferro que, presa à marquise do prédio, sustentava um letreiro. É sábado, início da manhã, o inferno da cidade apenas começa – e não sou o protagonista de O silencieiro. Ou talvez seja, talvez tenha sido sempre, sem saber.  

A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da tecnologia fugiram, há muito tempo, do nosso controle. Entre a elaboração da ciência e os resultados que ela provoca – em termos de técnicas, instrumentos, modos de vida e variações de comportamento –, existe um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O silencieiro se diz um mártir, “mártir da pretensão de viver minha vida e não a vida alheia, a vida imposta”. Como resposta, ouve de um político, ex-jornalista, a acusação de ser “inimigo do progresso”, ou seja, nada mais que o velho recurso dos cínicos, o lugar-comum que serve para manter as coisas exatamente onde estão.

Assim, vivendo sob a arbitrariedade, o narrador-personagem descobre, com amargura, que a lógica e a ética não servem à vida real. Os fatos se colocam apenas; são o que são. Os ruídos produzem loucos que, por sua vez, buscam novos ruídos – ou uma solução excêntrica, semelhante à experimentada pelo silencieiro, mas de conseqüências injustas e implacáveis.




(1) Em “Metrópole: a força dos fracos é seu tempo lento” (Técnica – Espaço – Tempo: globalização e meio técnico-científico informacional, Editora Hucitec, 2ª edição, SP, 1996).
(2) Editora Globo, SP, 2006.
(3) Lorenz, Günter W. Diálogo com a América Latina – panorama de uma literatura do futuro, E.P.U. – Editora Pedagógica e Universitária Ltda., SP, 1973.

maio 29, 2013

Malditos bons livros

Na primavera de 1934, em plena Grande Depressão, Arnold Samuelson, um jovem que sonhava se tornar escritor, viajou mais de três mil quilômetros para pedir conselhos a Ernest Hemingway. Depois dos primeiros minutos de conversa, Hemingway lhe perguntou de que autores gostava. Samuelson citou Robert Louis Stevenson e Henry David Thoreau. Ao que o escritor respondeu: “Você nunca leu Guerra e Paz?”. Diante da negativa do jovem, Hemingway completou: “É um maldito bom livro. Você deveria ler. Vamos até o meu escritório e vou fazer uma lista do que você deve ler”. O gesto de generosidade de Hemingway foi preservado:

maio 25, 2013

Alexis de Tocqueville, literatura e democracia

“By and large the literature of a democracy will never exhibit the order, regularity, skill, and art characteristic of aristocratic literature; formal qualities will be neglected or actually despised. The style will often be strange, incorrect, overburdened, and loose, and almost always strong and bold. Writers will be more anxious to work quickly than to perfect details. Short works will be commoner than long books, wit than erudition, imagination than depth. There will be a rude and untutored vigor of thought with great variety and singular fecundity. Authors will strive to astonish more than to please, and to stir passions rather than to charm taste.” (em Democracy in America)

Prefiro não imaginar o que Alexis de Tocqueville diria se conhecesse a atual literatura brasileira.

maio 24, 2013

Graça e natureza

Infelizmente esquecido ou desconhecido no Brasil, Charles Moeller dizia: “Um só homem é todo um mundo: o mundo da graça e da natureza que deseja viver e resplandecer nele”. Na verdade, seu pensamento ecoava as palavras de Santo Tomás de Aquino: “A graça não destrói a natureza, antes a aperfeiçoa”.

maio 21, 2013

Em defesa da urgente “centralização dos biltres”

Camilo Castelo Branco explica, neste trecho de A Queda dum Anjo, como às vezes cabe ao escritor garantir que os políticos corruptos não sejam esquecidos. De fato, muitos não merecem apenas “escorregar” da vida ao inferno; o mais justo e correto seria que, antes, a execração pública os cobrisse de maldições. Mas isso só acontece em países onde cuida-se que haja “a centralização dos biltres”:   
 
Para leitores entendidos na perversidade humana, a carta de Lopo de Gamboa é uma refinada e suja barganteria, estudada e escrita com um despejo não vulgar em bacharéis d’aqueles sítios. Aquele homem, se tivesse nascido em terras onde há a centralização dos biltres, morria com um nome para lembrança duradoura. Assim, nascido n’aquelas serras, onde não apegou ainda romancista de medrança, se o eu não transplantar para a corja dos birbantes das minhas novelas, o homem escorrega lá da serra no inferno, sem que a execração pública o cubra de maldições.

maio 18, 2013

Cem anos de um autêntico reacionário

Hoje comemoramos o centenário do magnífico Nicolás Gómez Dávila. Ele fala por si mesmo, com a força dos seus escólios, aos quais adicionei títulos inocentes:

A alguns funestos críticos literários

– A paixão igualitária é uma perversão do sentido crítico: atrofia a capacidade de distinguir.

Aos pretensos filósofos

– Uma gramática insuficiente prepara para uma filosofia confusa.

À maioria dos escritores

– Para seduzir não é necessário que o escritor tenha algo a dizer, mas que seja alguém.

Aos que desprezam os clássicos

– Toda literatura é contemporânea para o leitor que sabe ler.

Aos que vomitam palavras

– Não devemos escrever como falamos, mas como deveríamos falar.

Aos que acreditam pensar

– Ninguém pensa seriamente enquanto a originalidade lhe importa.

Aos que não gostam de mim
 
– O reacionário escapa da escravidão da história porque persegue na selva humana as pegadas dos passos divinos.

maio 15, 2013

Contradições e a arte de escrever em Theodor Adorno


Em alguns dos fragmentos que compõem Minima Moralia, Theodor Adorno fala sobre a escrita. No seu estilo muitas vezes seco, sempre a um passo de se tornar hermético, ele parece acreditar no que expõe: “Faz parte da técnica de escrever ser capaz de renunciar até mesmo a pensamentos fecundos, se a construção o exigir. Sua plenitude e sua força beneficiam-se precisamente dos pensamentos reprimidos. Como à mesa, não se deve comer até os últimos bocados, nem beber até o fim. Do contrário, nós nos tornamos suspeitos de pobreza”.

É o Adorno burguês quem fala nesse trecho do fragmento 51 – burguês no sentido flaubertiano do termo, aquele que realmente acredita ter abertura de espírito, mas só consegue destilar preconceito. Na verdade, exagera apenas para justificar seu próprio estilo, como, aliás, já fizera pouco antes, quando argumenta que o escritor deve “verificar em cada texto, cada fragmento, cada parágrafo, se o tema central sobressai com nitidez”.

Ora, angústias desse tipo servem à criação de textos fracionários. Há uma divagação – ou, melhor, uma circum-navegação – que não é de todo ruim: recorrer, por exemplo, a outras referências, que aparentemente se distanciam do tema central, apenas para iluminá-lo melhor.

Todo texto exige, em alguma medida, certa retórica. O próprio Adorno não pôde evitá-la. Nesse mesmo fragmento, gasta cinco linhas para compor uma bela metáfora, cuja função é, inclusive, demonstrar que ele sabe escrever direito: “Os textos bem elaborados são como teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem estruturados e sólidos. Eles atraem para dentro tudo o que voa e rasteja. As metáforas que os atravessam apressadas e descuidadas, tornam-se para eles presas nutritivas. Os materiais afluem facilmente para eles”.

As duas frases finais não seriam desnecessárias? Elas repetem, com outras palavras, o que está sintetizado nas duas iniciais – mas Adorno não teme usá-las; e, vaidoso, “come até o último bocado, bebe até o fim”. Mas isso é Adorno. Como todo marxista, contraditório.

Na verdade, não se deve “renunciar aos pensamentos fecundos”. Se eles podem, de fato, conectar-se ao tema central, por que não readequar o todo, por que não reescrever e reescrever até atingir o que efetivamente pretendemos?

Mas, sejamos justos, Adorno também acerta. “Nenhuma correção é demasiado pequena ou insignificante para que não se deva realizá-la. Em cem alterações, cada uma pode aparecer isoladamente como tola e pedante; juntas podem constituir um novo nível de texto” – conselho corretíssimo. Da mesma forma que é acertada sua observação sobre os lugares-comuns, muitas vezes “associações de palavras” nas quais “murmura o fluxo indolente de uma linguagem insípida”.

Entretanto, é pena que – ele chega a citar Karl Kraus – sua análise do clichê seja superficial. Mas não poderia ser de outro modo. Adorno não tem como evitar a vagueza, não pode retomar as críticas severas que Kraus fazia à linguagem submetida à ideologia, pois isso significaria ter de atacá-las, a fim de defender o marxismo...

Aliás, é o militante esquerdista quem afirma, no mesmo fragmento: “O sonho de uma existência sem ignomínia, ao qual a paixão pela linguagem se apega quando já não se pode mais representá-lo enquanto conteúdo, deve ser estrangulado com pérfida alegria”. Aí está o pensamento revolucionário, em permanente luta com a realidade, sempre pronto a substituí-la por seus próprios sonhos. O marxista precisa acreditar que a existência só é possível com ignomínia – e deve recusar a linguagem que pretenda reafirmar a dignidade e a glória da vida. Se não o fizer, como justificará a absoluta necessidade da utopia? Se não o fizer, não poderá justificar o que mais defende: que todos os meios são aceitáveis para construir o Paraíso aqui e agora.

Para Adorno, “o escritor não pode aceitar a distinção entre a expressão bela e a expressão adequada ao assunto. [...] Se consegue dizer inteiramente o que pretende dizer, então é belo o que diz”. Mas, logo depois, o militante tenta derrotar o esteticista: “Quem todavia, sob o pretexto de servir com abnegação a uma causa, negligencia a pureza de expressão, está por isso mesmo traindo a própria causa”. O contraditório marxista não sabe o que fazer: primeiro, a beleza é uma categoria que só pode ser medida pela vontade do próprio escritor; depois, há uma “pureza de expressão”, mas que não é definida.

Podemos aproveitar, contudo, os trechos felizes, como este: “O envolvimento afetivo com o texto e a vaidade tendem a diminuir a escrupulosidade. O que se deixa passar apenas como uma dúvida insignificante pode tornar manifesta a falta de valor objetivo do todo”. Quase sempre esquecidas, as duas frases deveriam permanecer à vista de todos os que são ou almejam ser escritores: render-se à vaidade é perder o rigor.

maio 14, 2013

Reflexões de Hermann Broch sobre o sagrado

“Só no centro do nosso ser se encontra o sagrado, o sagrado da nossa vida, desta vida tão breve, que se torna mais curta a cada noite, desta vida que não é êxtase nem máquina, mas um conhecimento que floresce, que se vai abrindo como se abrem as folhas, um processo de crescimento que vai da escuridão à escuridão, do que ainda não nasceu ao que ainda não nasceu, um renascer. No centro do nosso ser as árvores são abraçadas pelo céu e sopra o vento, como um suave mensageiro que se desloca de lá para cá entre as infinitudes, entre aquelas das quais ele vem e aquelas para as quais flui, e que nos leva, num leve impulso, como o vento que arrasta uma folha de outono, para que, transformando-nos em mensageiros de nós mesmos, vislumbremos o lugar de onde viemos, a partir de onde ocorreu o nosso despertar e o lugar ao qual nos dirigimos e onde haveremos de perecer. Só no centro de nós está o saber, o saber sobre o que o homem necessita para ser homem, o saber sobre sua humanidade e sua cultura, o saber piedoso que é o saber da cultura... Ele, que não é nem um saber do sangue nem um saber da técnica, mas um saber do homem sobre si mesmo. No centro do nosso ser, só no centro – nem no escuro êxtase dos seus limites, nem no arrebatamento da nossa primitiva origem, nem no arrebatamento da técnica, mas no nosso próprio ser –, é que o divino habita em nós.”
 
[Trecho do romance inacabado, Die Verzauberung.]

maio 06, 2013

Contra a mornidão de certa crítica literária

Diante dos melindrosos e ressentidos, que só admitem crítica literária sem julgamento – ou seja, que desejam transformar a crítica literária num exercício anódino ou meramente confortador –, devo lembrar um dos bons trechos de Álvaro Lins: “Julgar é um testemunho da dignidade da crítica. Ela não fica bem nas mãos dos conformistas, dos frágeis, dos amáveis, dos indistintos, dos suaves, dos incolores, dos frívolos, dos snobs”. Aos interessados em saber o motivo deste post, vale a pena ler a análise correta e corajosa que Cristiano Ramos faz do livro Tangolomango, de Raimundo Carrero, e que tem provocado a ira dos adeptos da cordialidade brasileira, sempre prontos a distribuir lisonjas, servilismo e outros afagos.

maio 03, 2013

Canalhice e afetação

No Rascunho deste mês, escrevo sobre o péssimo A correspondência de uma estação de cura, de João do Rio. Nessa tentativa de escrever um romance epistolar, o cronista só conseguiu reunir pedantismos, usando persistente tom de zombaria. O que foi grandioso nas mãos de Samuel Richardson (autor de Pamela e Clarissa) — e se aperfeiçoou com Rousseau (Julie ou la nouvelle Héloïse, 1761), Goethe (Os sofrimentos do jovem Werther, 1774), Chordelos de Laclos (As ligações perigosas, 1782) e Ugo Foscolo (Ultime lettere di Jacopo Ortis, 1802) — tornou-se medíocre sob a pena de João do Rio.